Em terra
de índio, a mineração bate à porta
Atualmente, um terço do território indígena na
Amazônia Legal é cobiçado; o Pará é o campeão nacional
Crianças Yanomami, nas proximidades do rio
Uraricoera, área invadida pelo garimpo. BRUNO KELLY REUTERS
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Atualmente, mesmo antes de
qualquer regulamentação que trate especificamente da mineração em terras indígenas, um
quarto delas registra processos minerários no Departamento Nacional de Produção
Mineral (DNPM), autarquia ligada ao Ministério de Minas e Energia (MME),
responsável pelas atividades mineradoras do país.
Levantamento da Pública
com base em dados do Instituto Socioambiental (ISA) e do
DNPM mostra que a mineração, uma atividade que sobrevive do proveito da terra,
sobretudo a inexplorada, está cada vez mais atraída pelos territórios indígenas
do Brasil. Na Amazônia Legal, por exemplo, região que engloba nove Estados, um
terço das áreas indígenas tem processos desse tipo, que vão do desejo de
explorar ouro, diamante e chumbo a minérios como cassiterita, cobre e estanho.
Nessa região, a proporção é de uma terra indígena para cada dez processos
minerários. Campeão nacional, o Pará concentra 50% desses processos em TIs já
identificadas oficialmente pela Funai.
Em algumas situações, áreas
indígenas paraenses estão completamente cobertas pela cobiça da mineração, que,
a despeito da recente queda dos preços das commodities, teve uma
produção que praticamente dobrou na última década e fora fomentada,
principalmente, por empresas como a Vale S.A., uma das maiores do mundo no
setor e segunda colocada no ranking das empresas com mais processos minerários
em TIs.
O garimpo suja o Tapajós
Lideranças indígenas falaram
sobre a questão durante o último Acampamento Terra Livre, mobilização indígena
realizada em Brasília no mês passado. Os depoimentos evidenciam não só a
preocupação com a mineração, mas com a invasão de garimpeiros, atividade também
proibida a não índios. A invasão de terras indígenas em busca das riquezas
naturais do território vem aumentando. Segundo os dados do Conselho
Indigenista Missionário (Cimi), as ocorrências de violência
contra o patrimônio dos indígenas subiram de 11 casos registrados em 2003 para
84 casos em 2014: aumento de mais de 600%. Segundo o Cimi, violência contra o
patrimônio são invasões de terras indígenas para exploração ilegal de recursos
naturais, posse da terra e danos diversos.
Maria Leuza Munduruku, da terra
Sawré Muybu, conta que o garimpo vem sujando o rio Tapajós. “Tem muita gente
estranha vindo de outras cidades pra garimpar lá dentro. A gente perde o nosso
peixe, e não dá pra comer porque fica muito sujo. A gente acaba não podendo
viver como a gente sempre viveu”, denuncia. Na internet, numa rápida pesquisa,
é possível achar sites que promovem o garimpo na região Norte. No blog Jornal
do Ouro, o anúncio é didático: “Negociação de áreas e garimpos com ouro e
diamantes no Tapajós. Quer comprar? Quer vender? Quer parceria?”. O responsável
pelo blog, o geólogo Alain Lestra, uma espécie de despachante minerário, é um
dos que mantêm interesse minerário na Sawré Muybu com autorização federal.
Procurado, ele não retornou o contato.
O caso da Sawré Muybu é mesmo
emblemático. Terra delimitada no ocaso da gestão Dilma Rousseff, em
abril passado, os 178 mil hectares têm um histórico de longa espera pela
demarcação. O relatório de identificação da área estava pronto desde setembro
de 2013 e ficou engavetado por questões políticas, como revelou a ex-presidente
da Funai Maria Augusta Assirati em entrevista exclusiva à Pública.
Segundo o documento, 94
processos minerários incidiam sobre o território, 20 deles requeridos em 2013.
Localizada no município de
Itaituba, a 1.300 km da capital Belém, a região sofre com o garimpo ilegal
desde a década de 1980. As lideranças Munduruku denunciaram à reportagem em
Brasília que a atividade garimpeira seguiria normalmente mesmo com a
identificação da terra. Na ocasião, Maria Leuza afirmou esperar uma atitude da
Funai. “Tem que mandar umas equipes para tirar essas pessoas que vêm fazendo
garimpo ilegal.” Até o fechamento, a Funai não retornou o pedido de
esclarecimento.
Atualmente, os processos
minerários incidem em mais de 90% do território da Sawré Muybu. Pelo menos 20
desses processos são títulos de atividade minerária, como pesquisa e lavra
garimpeira, caso do garimpo de ouro e diamante do geólogo Alain Lestra.
Por se tratar de um assunto
espinhoso, é preciso esclarecer que um processo minerário se divide em
interesses e títulos minerários. “Interesses” são requerimentos de pesquisa,
bem como os de lavra garimpeira, e marcam prioridade do requerente, o que
pressupõe uma expectativa de direito. Já os “títulos” abrangem as autorizações
ou alvarás de pesquisa, requerimentos de lavra, concessões de lavra e
licenciamento, ou seja, constituem direitos individuais concedidos pelo Poder
Público.
Confusão sem fim
A mineração em terras indígenas
está prevista no artigo 231 da Constituição Federal, mas só pode ser exercida
se regulamentada por legislação específica, ainda inexistente. Por isso,
qualquer atividade minerária em TIs é ilegal. Durante a apuração da reportagem,
no entanto, uma questão gerou confusão entre órgãos federais: o que vai
acontecer com os títulos de atividade minerária na recém-identificada Sawré
Muybu?
Em uma dúzia de entrevistas com
especialistas na questão, o consenso passou longe. Segundo o ex-servidor da
Funai Nuno Nunes, que atuou até o ano passado como coordenador de Transporte e
Mineração na Coordenação Geral de Licenciamento Ambiental, é preciso que os
índios procurem o Ministério Público Federal para denunciar. “O DNPM tem que
ser movido judicialmente para suspender essas concessões de lavra”, afirma. Ele
esclarece que o sistema de alerta só é automático quando ocorre a homologação
da terra, ou seja, quando há a chancela presidencial. “Quando homologa, todos
os cartórios da região, todo o sistema burocrático reconhece”, diz. Para ele, a
Funai já poderia ter enviado um ofício ao DNPM pedindo a suspensão desses
títulos minerários.
Por outro lado, a superintendente
substituta do DNPM no Pará, Adriana Pantoja, alega que a terra indígena ainda
consta nos mapas da superintendência como delimitada e não identificada, tarefa
de atualização que, segundo ela, cabe à sede do órgão, em Brasília.
Em 2014, procuradores do MPF-Pará
recomendaram ao DNPM
que indeferisse todos os requerimentos de pesquisa e lavra mineral que
incidissem em terras indígenas, pela ausência da regulamentação do tema pelo
Congresso. A Funai defende a mesma posição ao alegar em nota que a “atividade
de mineração em terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas, independente
da fase do procedimento administrativo, é ilegal”.
Nesse ponto, novamente, os órgãos
não se entendem com o DNPM. Falta consenso sobre a legalidade ou não de os
títulos minerários incidirem em áreas indígenas, por exemplo, quando é emitida
uma autorização de pesquisa.
L.D., servidor do DNPM no Pará,
explicou, sob a condição de não ter seu nome revelado, que existem duas
correntes de pensamento a respeito da mineração em áreas indígenas. “Uma que diz
que é possível”, a qual ele pertence. “E outra que diz que não é possível”,
argumenta. Para ele, se alguém requerer dentro de uma área indígena, o pedido
deve ser indeferido, justamente por causa da falta de regulamentação. Mas o
servidor pondera: “Entendo que o direito de pedir enquanto não se homologou a
terra é facultado a qualquer pessoa. Agora, se ele será atendido ou não é outra
coisa”, diz.
Um pedido de processo mineral,
seja um título ou interesse, garante ao requerente a prioridade sobre a mineração
na TI, o que poderá se transformar em lucro caso a regulamentação seja aprovada
no Congresso. Além disso, nessa circunstância, o título pode ser especulado em
bolsas de valores. “Isso é mercado futuro, de commodities. Com um título
desses, o cara consegue especular na Bolsa de Chicago, que negocia o futuro”,
diz Nuno Nunes.
“Olho grande” do PL 1.610/96
“Vai sobrar o que agora?”,
pergunta Mário Nicácio, índio do povo Wapichana, e coordenador-geral do
Conselho Indígena de Roraima (CIR), que se diz preocupado com o PL 1.610/1996, que
pretende regulamentar a mineração em terras indígenas.
Atualmente, o PL 1.610 tramita em
regime de prioridade na Câmara e precisa ser aprovado pelas comissões de mérito
da Casa para ir à sanção presidencial, sem passar pelo plenário. A única
pendência é que o conteúdo seja analisado por uma comissão especial eleita em
junho do ano passado, presidida pelo deputado Índio da Costa (PSD-RJ), mas
nenhuma deliberação foi realizada até o momento. O relator da matéria, Édio
Lopes (PR), integra a Frente Parlamentar Agropecuária, declaradamente
anti-indígena.
Em caso de sanção do PL 1.610, a
mineração passaria a ser legal nas terras indígenas mediante consulta e o
repasse de uma porcentagem dos lucros aos índios. No entanto, o movimento
indígena vê o PL com preocupação. “Temos grande preocupação com esse PL 1.610.
A gente acha que ele vem mais para atender aos interesses dos empresários que
querem fazer mineração nas terras do que dos povos indígenas”, avalia Sônia
Guajajara, coordenadora geral da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil
(Apib). “O direito de exploração mineral não quer dizer a obrigação. Não
estamos tirando nenhum direito dos índios, e sim ampliando. Os que quiserem
autorizar a exploração em suas terras terão suas terras exploradas”, afirmou
Índio da Costa à época de sua eleição para a presidência da comissão.
Procurado, o deputado não retornou os contatos.
Márcio Santilli, do Instituto
Socioambiental (ISA), afirma que o projeto vem na esteira da chamada
“reprimarização” da economia brasileira, sobretudo nas exportações. Em linha
gerais, o que ele quer dizer é que nos últimos anos a economia tem passado a
depender mais da exploração de commodities, como o minério de ferro e
outros. “Esse quadro vem implicando um fortalecimento de setores da sociedade e
da economia que têm uma maior contradição com a destinação de terras para fins
socioambientais, como as terras indígenas. E está muito ligado a esses projetos
que voltaram à tona no Congresso Nacional”, analisa, referindo-se também a
outros atos legislativos que afetam a pauta indígena, como a PEC 215, que transfere ao Congresso a decisão
final sobre a demarcação das TIs.
O movimento indigenista defende
que a regulamentação da mineração em TIs seja apreciada com o Estatuto das Sociedades Indígenas (PL
2.057/1991), já aprovado em comissão especial em 1994 e parado
desde então na Câmara Federal.
Diante da indefinição da pauta,
vários indígenas continuam apreensivos. “Eles sabem que as nossas reservas têm
riqueza. Que é a madeira, o ouro, o sal, o ferro. É por causa disso que eles
têm o olho muito grande sobre as terras indígenas da Amazônia. Onde tem terra
indígena tem floresta, tem riqueza. Como é que vão ficar nossas terras se as
empresas entrarem ainda mais? Vão terminar de destruir tudo de vez”, desabafa
Antônio Pereira, do povo Munduruku Cara Preta, do Pará.
Davi Kopenawa, uma das
maiores lideranças dos Yanomami, avaliou num manifesto lançado
em 2014 que a mineração não é como o garimpo. “A mineração precisa de estradas
para transportar os minérios, precisa de grandes áreas para guardar a produção,
precisa de locais para alojar os funcionários, o que fará grandes buracos na
terra, e não deixarão a nossa floresta voltar a se recuperar”, escreveu.
“Quando os minérios mais valiosos terminarem e as mineradoras forem embora, o
que acontecerá com os trabalhadores que foram até a terra indígena? Quando
transformarem e produzirem minério, quais são os resíduos que podem contaminar
nossa terra por muito tempo?”
Yanomami chegam a ter 92% das pessoas contaminadas por mercúrio. Marcos
Wesley ISA
Um estudo publicado no início do ano
pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em parceria com o Instituto Socioambiental
(ISA) revelou que algumas aldeias Yanomami de Roraima
chegam a ter 92% das pessoas examinadas contaminadas por mercúrio, usado na
mineração do ouro, o que pode acarretar, entre outras enfermidades, doenças
cardíacas e neuromotoras. Segundo o ISA, estima-se que 5 mil garimpeiros atuem
nessa TI, que sofre há décadas com a invasão de suas terras.
“Todo ano a polícia vai, retira e
destrói o garimpo. Mas chega no outro ano está tudo lá de novo. O garimpo está
atrapalhando muito o desenvolvimento da comunidade. Há um sério risco de vida
daquela população”, afirmou Mário Nicácio, índio do povo Wapichana. “É preciso
agora descobrir quem está financiando esse garimpo para acabar com essa onda de
invasões”, sugere.
O problema não é novo. Entre 1986
e 1990, ao menos 20% da população morreu em função de doenças e violências
causadas por 45 mil garimpeiros. Nos anos 1990, no episódio chamado de Massacre
de Haximu, o primeiro caso julgado pela Justiça brasileira no qual os réus
foram condenados por genocídio, garimpeiros invadiram uma aldeia Yanomami e
assassinaram a tiros e golpes de facão 16 indígenas, entre eles idosos,
mulheres e crianças. Atualmente, Roraima tem interesses minerários em terras
indígenas que cobrem toda a extensão das terras Araçá, Barata/Livramento e
Boqueirão.
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