Por que o
fim das bolsas da Capes será um desastre para a ciência do Brasil
Conversamos com mestrandos e doutorandos que
recebem fomento da instituição. Medida é reflexo de corte no orçamento do MEC.
Na tarde de quinta-feira (2), a
Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) divulgou nota na qual anunciou a
iminente suspensão de pagamentos, a partir de agosto de 2019, de mais de 93 mil
bolsas de mestrado, doutorado e pós-doutorado de todo o Brasil. Não bastasse
isso, a entidade de fomento à pesquisa científica anunciou a suspensão de
pagamentos, a partir também de agosto de 2019, de 105 mil bolsistas do Pibid
(Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência), do Programa de
Residência Pedagógica e do Parfor (Programa Nacional de Formação de Professores
da Educação Básica).
A determinação é resultante da
PLOA (Projeto de Lei Orçamentária) estabelecida pelo Ministério do Planejamento
para 2019 para todas as pastas, inclusive para o MEC (Ministério da Educação).
De acordo com a Capes, a entidade recebeu “um teto limitando seu orçamento para
2019 que representa um corte significativo em relação ao próprio orçamento de
2018, fixando um patamar muito inferior ao estabelecido pela LDO”, o que
resultou na decisão que afetará quase 200 mil bolsistas a partir de 2019.
Segundo a instituição, as bolsas de fomento deste ano serão preservadas.
Este foi o estopim para uma série
de reações inflamadas nas redes sociais. Por um lado, bolsistas, ex-bolsistas e
pessoas preocupadas com a produção científica no Brasil lamentavam a decisão.
Em sua conta no Twitter, o
neurocientista Miguel Nicolelis relatou que esse fato “pode representar a
última pá de cal na ciência brasileira” se não houver mudanças no orçamento do
MEC.
Em contrapartida, houve gente
fazendo a sua parte para aumentar a pororoca de chorume nas redes sociais, ao
comemorar a decisão por, entre outros motivos, haver gente interessada em
“apenas estudar” e “não fazer nada relevante para o Brasil”. Talvez
esse mesmo pessoal passe pano para, entre outras coisas, a treta do
auxílio-moradia para juízes federais.
Sentindo na pele
Silvia Santos, doutoranda em
biologia vegetal, receberá bolsa até março de 2020 para a produção de pesquisa
sobre fisiologia e anatomia de planta que faz associação com bactéria fixadora
de nitrogênio - ou seja, o lance é voltado à recuperação de áreas degradadas.
Como se pode imaginar, o corte nas bolsas a prejudicará de modo definitivo.
“Com a interrupção das bolsas, os
últimos sete meses serão prejudicados, pois sem bolsa é inviável dar
continuidade ao doutorado. Além do mais, com todos os cortes, eu que banco
todos os gastos do meu projeto com minha bolsa”, explicou ao Motherboard.
A mestra em arte Aila Regina da
Silva recebeu bolsa da Capes de 2014 a 2016 para desenvolver projeto educativo
no MAC (Museu de Arte Contemporânea), da USP (Universidade de São Paulo), no
qual organizou encontros abertos à comunidade para ser possível conhecer o
museu por meio de mediação dançada - “abertos literalmente, pois era para
qualquer pessoa mesmo, com ou sem deficiência, e de qualquer idade”.
De acordo com Aila, até hoje
pessoas e instituições que participaram das atividades perguntam a respeito.
“Recebo e-mails de escolas perguntando se haverá mais, acredita? Mas a
burocracia do museu é muito difícil para tornar fixo esse projeto. O retorno
foi muito melhor do que o esperado, mas não tive braço na época para deixá-lo
maior - eu estava sozinha e precisaria de mais gente para dar suporte para mais
pessoas, além de escrever a dissertação.”
Para Hugo Alves, doutorando em
meteorologia, que recebeu bolsa da Capes entre junho de 2016 e junho de 2018
para realizar pesquisa sobre a propagação de ondas atmosféricas no Hemisfério
Sul, o corte nas bolsas da Capes será brutal porque causará, entre outras
coisas, incertezas para os pesquisadores sobre o andamento em seus respectivos
projetos e até mesmo para manutenção do custo de vida.
“A gente não utiliza a bolsa
somente para gastos acadêmicos: a gente utiliza para se manter na cidade. E
como haverá isso? A produção científica de massa é, basicamente, feita por
alunos de doutorado e mestrado, sendo que a maioria se mantém com essa bolsa.
Como a academia vira atrativo, mesmo já não sendo, nessa situação?”, questiona
o jovem, a respeito do baixo interesse em produção científica que a decisão
acarretará.
O ponto de vista de Hugo é
compartilhado pela também pesquisadora Ana Stern, cujo projeto, que analisa como
a ascensão do funk light - vertente mais comercial do gênero - na grande mídia
populariza o funk e abre espaço para artistas terem voz em discussões culturais
e políticas, receberá fomento até março de 2019.
Para Ana, a interrupção nas
bolsas desestimulará e impossibilitará até mesmo que pesquisadores se dediquem
à academia, além de pontuar o que parte da população acha do trabalho
acadêmico. “Quem vê isso como algo positivo não considera pesquisa um trabalho.
É comum ouvir ‘mas você só estuda?’ quando se está em um mestrado ou doutorado,
e acham bolsa um luxo desnecessário. É preciso mudar essa mentalidade e o
universo acadêmico deveria ter muito mais visibilidade para a sociedade
entender a importância da pesquisa acadêmica.”
Por que pesquisa é vista como elitismo?
O senso comum faz a produção
acadêmica ser vista como desperdício, pois há quem a veja como desperdício de
dinheiro público e produção de projetos que pouco ou nada agregarão à sociedade
- como vimos acima, esse não é mesmo o caso.
Contudo, por que este tipo de
visão impera entre quem está longe da academia? Algumas possibilidades são a
visão rasa sobre a formação universitária servir apenas para o mercado de
trabalho ou para a sociedade.
Boa parte da sociedade realmente
não sabe o que ocorre dentro da universidade. Muitas acreditam que é apenas um
lugar onde dão diplomas, mas de modo ‘gratuito’”, destaca Hugo. Para ele, o
ambiente acadêmico tem certa parcela de culpa nesse cenário por se manter,
digamos, distante. “Acho que é um erro da universidade de não se permitir estar
próxima à sociedade, ao mostrar o que está acontecendo lá dentro. Em muitas
vezes, a ciência não é de fácil entendimento e não cria soluções de curto
prazo. Existe certo delay para o que foi discutido academicamente chegar até a
sociedade, mas vivemos em uma época de imediatismo.”
Para Aila, a academia precisa
perceber que é necessário devolver à sociedade projetos que a população possa
usar também.
“Do mesmo jeito que as pessoas
acham que pesquisador é oba-oba, é preciso o próprio pesquisador entender o seu
papel na academia e não desvincular isso da sociedade. [É necessário haver]
responsabilidade acadêmica”, descreve. Ainda assim, a mestra em arte considera
que a interrupção da Capes mostra a desinformação social. “Esse corte, na minha
singela opinião, revela o lado de pessoas que não têm ideia do que a comunidade
científica faz, ao achar que esse corte serve para ‘parar de bancar
maconheiro’.”
Outro lance a ser destacado diz
respeito a episódios em que a imprensa ridicularizou determinados projetos de
pesquisa. “Temos também uma cultura tecnicista, de considerar o pensamento
teórico como prescindível ao mercado de trabalho, desde a graduação. Na própria
academia há preconceito com pesquisas que olhem para a questão do consumo ou
seja interessante ao mercado. Isso tudo cria afastamento muito grande entre
academia e a sociedade em geral”, reforça Ana Stern.
Segundo Silvia Santos, o corte no
fornecimento de bolsas influenciará até mesmo a formação de professores
universitários. “A queda na formação de pesquisadores cairá vertiginosamente e
deixará [campo] em aberto para pesquisadores de outros países virem e
usufruírem de todas as possíveis pesquisas que podem ser feitas no nosso país,
que é tão rico e com tanta coisa a ser explorada. Além disso, o desinteresse
pela vida acadêmica será ainda maior e o número de professores capacitados para
comandar universidades cairá também.”
Hugo Alves considera também que a
interrupção na concessão de bolsas aumentará o viés elitista em universidades
públicas, uma vez que boa parte dos estudantes não tem condições de reservar
dois anos da própria vida para bancar pesquisas e o próprio cotidiano com
bolsas de R$ 1.500.
“Você teria de permitir um
estudante com a bolsa se manter com todos os custos necessários e não precisar
se apertar para comer, se locomover e morar. Com o corte das bolsas, você
impede o acesso até para boa parte da classe média, tornando a universidade ainda
mais elitizada, tendo menos pesquisadores que possam se manter e, assim,
caminhar para um desmonte científico.”
A versão do MEC
Em nota conjunta, o Ministério do
Planejamento, Desenvolvimento e Gestão e o MEC citaram que a LOA (Lei Orçamentária
Anual) para despesas da pasta da educação é de R$ 23,6 bilhões, ao passo que o
valor disponibilizado para 2019 é de R$ 20,8 bilhões, em virtude de restrições
fiscais previstas para o próximo ano.
De acordo com a nota, o limite
foi repassado proporcionalmente para a Capes, mas os valores envolvidos poderão
ser alterados até o encaminhamento da Proposta de Lei Orçamentária, até 31 de
agosto, e que será discutida no Congresso Nacional. Além disso, os ministros da
Educação, Rossieli Soares da Silva, e do Planejamento, Esteves Pedro Colnago
Jr., irão se reunir nesta sexta-feira (3) para encontrar solução para esse
fato.
Segundo a nota, “os recursos
enviados ao Ministério da Educação estão acima do mínimo constitucional em 2018
e os referenciais monetários para 2019 também preveem recursos acima do limite
constitucional.”
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