07 agosto, 2018

Golpe contra o Brasil


Por que o fim das bolsas da Capes será um desastre para a ciência do Brasil

Conversamos com mestrandos e doutorandos que recebem fomento da instituição. Medida é reflexo de corte no orçamento do MEC.




Na tarde de quinta-feira (2), a Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) divulgou nota na qual anunciou a iminente suspensão de pagamentos, a partir de agosto de 2019, de mais de 93 mil bolsas de mestrado, doutorado e pós-doutorado de todo o Brasil. Não bastasse isso, a entidade de fomento à pesquisa científica anunciou a suspensão de pagamentos, a partir também de agosto de 2019, de 105 mil bolsistas do Pibid (Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência), do Programa de Residência Pedagógica e do Parfor (Programa Nacional de Formação de Professores da Educação Básica).

A determinação é resultante da PLOA (Projeto de Lei Orçamentária) estabelecida pelo Ministério do Planejamento para 2019 para todas as pastas, inclusive para o MEC (Ministério da Educação). De acordo com a Capes, a entidade recebeu “um teto limitando seu orçamento para 2019 que representa um corte significativo em relação ao próprio orçamento de 2018, fixando um patamar muito inferior ao estabelecido pela LDO”, o que resultou na decisão que afetará quase 200 mil bolsistas a partir de 2019. Segundo a instituição, as bolsas de fomento deste ano serão preservadas.

Este foi o estopim para uma série de reações inflamadas nas redes sociais. Por um lado, bolsistas, ex-bolsistas e pessoas preocupadas com a produção científica no Brasil lamentavam a decisão. Em sua conta no Twitter, o neurocientista Miguel Nicolelis relatou que esse fato “pode representar a última pá de cal na ciência brasileira” se não houver mudanças no orçamento do MEC.

Em contrapartida, houve gente fazendo a sua parte para aumentar a pororoca de chorume nas redes sociais, ao comemorar a decisão por, entre outros motivos, haver gente interessada em “apenas estudar” e “não fazer nada relevante para o Brasil”. Talvez esse mesmo pessoal passe pano para, entre outras coisas, a treta do auxílio-moradia para juízes federais.

Sentindo na pele

Silvia Santos, doutoranda em biologia vegetal, receberá bolsa até março de 2020 para a produção de pesquisa sobre fisiologia e anatomia de planta que faz associação com bactéria fixadora de nitrogênio - ou seja, o lance é voltado à recuperação de áreas degradadas. Como se pode imaginar, o corte nas bolsas a prejudicará de modo definitivo.

“Com a interrupção das bolsas, os últimos sete meses serão prejudicados, pois sem bolsa é inviável dar continuidade ao doutorado. Além do mais, com todos os cortes, eu que banco todos os gastos do meu projeto com minha bolsa”, explicou ao Motherboard.

A mestra em arte Aila Regina da Silva recebeu bolsa da Capes de 2014 a 2016 para desenvolver projeto educativo no MAC (Museu de Arte Contemporânea), da USP (Universidade de São Paulo), no qual organizou encontros abertos à comunidade para ser possível conhecer o museu por meio de mediação dançada - “abertos literalmente, pois era para qualquer pessoa mesmo, com ou sem deficiência, e de qualquer idade”.

De acordo com Aila, até hoje pessoas e instituições que participaram das atividades perguntam a respeito. “Recebo e-mails de escolas perguntando se haverá mais, acredita? Mas a burocracia do museu é muito difícil para tornar fixo esse projeto. O retorno foi muito melhor do que o esperado, mas não tive braço na época para deixá-lo maior - eu estava sozinha e precisaria de mais gente para dar suporte para mais pessoas, além de escrever a dissertação.”

Para Hugo Alves, doutorando em meteorologia, que recebeu bolsa da Capes entre junho de 2016 e junho de 2018 para realizar pesquisa sobre a propagação de ondas atmosféricas no Hemisfério Sul, o corte nas bolsas da Capes será brutal porque causará, entre outras coisas, incertezas para os pesquisadores sobre o andamento em seus respectivos projetos e até mesmo para manutenção do custo de vida.

“A gente não utiliza a bolsa somente para gastos acadêmicos: a gente utiliza para se manter na cidade. E como haverá isso? A produção científica de massa é, basicamente, feita por alunos de doutorado e mestrado, sendo que a maioria se mantém com essa bolsa. Como a academia vira atrativo, mesmo já não sendo, nessa situação?”, questiona o jovem, a respeito do baixo interesse em produção científica que a decisão acarretará.

O ponto de vista de Hugo é compartilhado pela também pesquisadora Ana Stern, cujo projeto, que analisa como a ascensão do funk light - vertente mais comercial do gênero - na grande mídia populariza o funk e abre espaço para artistas terem voz em discussões culturais e políticas, receberá fomento até março de 2019.

Para Ana, a interrupção nas bolsas desestimulará e impossibilitará até mesmo que pesquisadores se dediquem à academia, além de pontuar o que parte da população acha do trabalho acadêmico. “Quem vê isso como algo positivo não considera pesquisa um trabalho. É comum ouvir ‘mas você só estuda?’ quando se está em um mestrado ou doutorado, e acham bolsa um luxo desnecessário. É preciso mudar essa mentalidade e o universo acadêmico deveria ter muito mais visibilidade para a sociedade entender a importância da pesquisa acadêmica.”

Por que pesquisa é vista como elitismo?

O senso comum faz a produção acadêmica ser vista como desperdício, pois há quem a veja como desperdício de dinheiro público e produção de projetos que pouco ou nada agregarão à sociedade - como vimos acima, esse não é mesmo o caso.

Contudo, por que este tipo de visão impera entre quem está longe da academia? Algumas possibilidades são a visão rasa sobre a formação universitária servir apenas para o mercado de trabalho ou para a sociedade.

Boa parte da sociedade realmente não sabe o que ocorre dentro da universidade. Muitas acreditam que é apenas um lugar onde dão diplomas, mas de modo ‘gratuito’”, destaca Hugo. Para ele, o ambiente acadêmico tem certa parcela de culpa nesse cenário por se manter, digamos, distante. “Acho que é um erro da universidade de não se permitir estar próxima à sociedade, ao mostrar o que está acontecendo lá dentro. Em muitas vezes, a ciência não é de fácil entendimento e não cria soluções de curto prazo. Existe certo delay para o que foi discutido academicamente chegar até a sociedade, mas vivemos em uma época de imediatismo.”

Para Aila, a academia precisa perceber que é necessário devolver à sociedade projetos que a população possa usar também.

“Do mesmo jeito que as pessoas acham que pesquisador é oba-oba, é preciso o próprio pesquisador entender o seu papel na academia e não desvincular isso da sociedade. [É necessário haver] responsabilidade acadêmica”, descreve. Ainda assim, a mestra em arte considera que a interrupção da Capes mostra a desinformação social. “Esse corte, na minha singela opinião, revela o lado de pessoas que não têm ideia do que a comunidade científica faz, ao achar que esse corte serve para ‘parar de bancar maconheiro’.”

Outro lance a ser destacado diz respeito a episódios em que a imprensa ridicularizou determinados projetos de pesquisa. “Temos também uma cultura tecnicista, de considerar o pensamento teórico como prescindível ao mercado de trabalho, desde a graduação. Na própria academia há preconceito com pesquisas que olhem para a questão do consumo ou seja interessante ao mercado. Isso tudo cria afastamento muito grande entre academia e a sociedade em geral”, reforça Ana Stern.

Segundo Silvia Santos, o corte no fornecimento de bolsas influenciará até mesmo a formação de professores universitários. “A queda na formação de pesquisadores cairá vertiginosamente e deixará [campo] em aberto para pesquisadores de outros países virem e usufruírem de todas as possíveis pesquisas que podem ser feitas no nosso país, que é tão rico e com tanta coisa a ser explorada. Além disso, o desinteresse pela vida acadêmica será ainda maior e o número de professores capacitados para comandar universidades cairá também.”

Hugo Alves considera também que a interrupção na concessão de bolsas aumentará o viés elitista em universidades públicas, uma vez que boa parte dos estudantes não tem condições de reservar dois anos da própria vida para bancar pesquisas e o próprio cotidiano com bolsas de R$ 1.500.

“Você teria de permitir um estudante com a bolsa se manter com todos os custos necessários e não precisar se apertar para comer, se locomover e morar. Com o corte das bolsas, você impede o acesso até para boa parte da classe média, tornando a universidade ainda mais elitizada, tendo menos pesquisadores que possam se manter e, assim, caminhar para um desmonte científico.”

A versão do MEC

Em nota conjunta, o Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão e o MEC citaram que a LOA (Lei Orçamentária Anual) para despesas da pasta da educação é de R$ 23,6 bilhões, ao passo que o valor disponibilizado para 2019 é de R$ 20,8 bilhões, em virtude de restrições fiscais previstas para o próximo ano.

De acordo com a nota, o limite foi repassado proporcionalmente para a Capes, mas os valores envolvidos poderão ser alterados até o encaminhamento da Proposta de Lei Orçamentária, até 31 de agosto, e que será discutida no Congresso Nacional. Além disso, os ministros da Educação, Rossieli Soares da Silva, e do Planejamento, Esteves Pedro Colnago Jr., irão se reunir nesta sexta-feira (3) para encontrar solução para esse fato.

Segundo a nota, “os recursos enviados ao Ministério da Educação estão acima do mínimo constitucional em 2018 e os referenciais monetários para 2019 também preveem recursos acima do limite constitucional.”

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